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01/04/2004

Lobato Paraense

Pelo mar, rumo ao Recife

Ricardo Valverde


Foi em um período de grandes transformações no Brasil, trazidas pelo movimento que gerou a Revolução de 30, que Lobato entrou para a universidade, em 1931. Já no segundo ano de faculdade ele começou a estagiar no laboratório de um professor de histologia e anatomia patológica, na Santa Casa de Belém. Ele admirava o mestre e pediu uma vaga na instituição. Era uma maneira de compensar a precariedade do ensino recebido, que entre outras situações inusitadas colocava um pediatra para dar aulas de fisiologia. Inquieto, Lobato começou a matutar a idéia de sair da capital paraense em busca de melhores condições para progredir na carreira. Ele só não contava com a desaprovação dos pais adotivos, que não o queriam estudando longe. Raymundo chegou a cortar o pagamento do curso de medicina para que o jovem fosse reprovado e assim não tivesse condições de viajar. Nada, porém, parecia deter o acadêmico, que decidiu vender um anel para obter o dinheiro necessário para se transferir para o Recife. Firme, ele partiu para concretizar a venda quando encontrou um colega da Escola de Comércio - onde haviam estudado contabilidade - que ao saber da história se prontificou a dar o dinheiro necessário para a passagem. Lobato daria a jóia a ele e receberia em troca o valor do objeto. Mais tarde, quando tivesse amealhado dinheiro suficiente, Lobato devolveria a quantia e receberia o anel de volta. Wladimir procurou então o pai do colega, que era proprietário de uma joalheria, para fazer uma avaliação. O valor da jóia foi calculado em 350 mil réis, insuficientes para adquirir uma passagem de navio de primeira classe da Companhia Nacional de Navegação Costeira (um Ita), mas o bastante para garantir a terceira classe e ainda lhe permitir guardar 50 mil. Rumo ao Recife, Lobato pegou um Ita. No Norte.

  Lobato (à direita) com o amigo Teófilo Conduru em 1932
 

Como os parentes continuavam a não concordar com a transferência, Lobato chegou a ameaçar se matar - eles só não sabiam que o alerta era falso, uma brincadeira para que facilitassem a saída do rapaz, que então tinha 21 anos. Do Pará à capital pernambucana a viagem durava, em 1935, dez dias, com paradas nos principais portos. Ao embarcar, Lobato ficou espantado com as condições da terceira classe, que estava repleta de nordestinos retornando dos seringais do Acre. Não havia camas, mas uma porção de redes amarradas pelos cantos, além de muitos passageiros dormindo pelo chão. Mas o estudante não chegou a se lamentar por muito tempo. Trajando seu melhor terno, e portanto aparentando ser um estranho no ninho em meio aos retirantes, Lobato foi "salvo" da terceira classe pouco depois de embarcar, quando um marinheiro o procurou e disse que o comandante o queria transferido para a segunda classe. Pura simpatia à primeira vista do velho lobo do mar para com o estudante de medicina. Convocado à presença do oficial, Lobato ficou sabendo, pelo próprio, que passaria a dormir no camarote dos músicos. E que nas refeições poderia se sentar à mesa do comandante. O resumo da história é que Lobato pagou pela terceira classe, dormiu na segunda e circulou pela primeira durante toda a viagem. Sem gastar um tostão a mais pelo inesperado conforto.

Dez dias no mar e Lobato chegou, enfim, ao Recife. Ele foi morar com a família do cunhado da irmã mais velha, um oficial do Exército que acabara de ser transferido de Natal para a capital pernambucana. A casa ficava numa pequena cidade ao sul da Veneza Brasileira e ali Lobato teve uma temporada calma, em meio a um casal com filho. Só lhe faltava um emprego, para que tivesse condições de pagar os estudos na Faculdade de Medicina do Recife - na época não havia ensino superior gratuito - e também porque os 50 mil réis de que dispunha acabariam inevitavelmente. Só que os possíveis empregadores não o admitiam porque sabiam que o teriam por pouco tempo, já que depois de formado (e faltava pouco para conseguir o diploma) Lobato ganharia a vida como médico. Nesse momento ocorreu então uma conjunção de fatores que lhe daria a oportunidade que buscava.

Com uma caixa de lâminas de histologia trazidas do Pará, Lobato decidiu visitar a faculdade de medicina, no bairro do Derby - que tem esse nome porque em suas cercanias funcionava um hipódromo. Ao chegar ao prédio, ele subiu um lance de escadas e chegou a um andar vazio, onde havia a sala do Laboratório de Anatomia Patológica. Ele empurrou a porta e dentro do recinto viu um homem sobre um balcão, olhando por um microscópio. O homem, Aloisio Bezerra Coutinho, tinha 26 anos e pouco depois veio a ser o catedrático mais jovem do país. Após as apresentações, eles iniciaram uma rápida conversa e Lobato foi logo inquirido sobre o que carregava. O homem pegou uma das lâminas e ficou por alguns minutos analisando-a no aparelho ótico. Então ele se virou para Lobato e disse que o professor Jorge Lobo iria gostar de ver o material. Como Lobo não estava presente, Lobato combinou de voltar depois que almoçasse. Quando retornou, encontrou o professor, que repetia nervosamente a pergunta: "Onde está a lâmina?". Lobato teve que explicar que havia conseguido as amostras de um paciente da Santa Casa de Belém - onde estagiava - que veio de Guajará-Mirim (RO), na fronteira com a Bolívia. O caso que chamou a atenção do professor-catedrático de dermatologia da Faculdade de Medicina do Recife era mais um exemplo do desconhecimento acerca das doenças da Floresta Amazônica. O sujeito tinha sido picado por uma cobra não-venenosa, não se tratou e por conta disso um caroço subiu e se espalhou pelas costas. Lobo conhecia um caso parecido, em um paciente internado num hospital de dermatologia que, por coincidência, também tinha vindo de Guajará-Mirim. As lâminas serviram para que o mestre publicasse um trabalho descrevendo a nova enfermidade, que passou a ser conhecida como Doença de Jorge Lobo. E o estudante, que até aquele momento era conhecido e se apresentava como Wladimir, virou Lobato a pedido de Lobo - que o convidou a trabalhar na faculdade. O motivo era prosaico e revelador das intrigas que vicejam no meio acadêmico. Lobo mantinha uma rivalidade com Valdemir Miranda, com o qual havia disputado - e vencido - o concurso para a cadeira de professor de dermatologia. Devido à semelhança entre os nomes, já que segundo Lobo o nome do concorrente "não podia ser pronunciado", Wladimir se tornou Lobato. E assim seria conhecido profissionalmente.

Lobato permaneceu com o catedrático - que era irmão do senador e constituinte em 1934 Tomás Lobo - por dois anos, os últimos de um total de seis em que cursou medicina. Depois de passar o primeiro ano em Pernambuco na casa do cunhado da irmã, ele se transferiu para o alojamento do hospital. Aluno aplicado, Lobato usufruía de poucos momentos de lazer. Na época, ele arranjou uma namorada e passeava com a moça em uma praça próxima, onde permaneciam por algum tempo sentados em um banco trocando alguns dedos de prosa. Se na carreira Lobato parecia estar bem encaminhado, a situação econômica começava a preocupá-lo. Os 50 mil réis que trouxera de Belém estavam desaparecendo, embora os gastos fossem poucos devido aos seus hábitos espartanos e caseiros. Mais dinheiro, portanto, seria muito bem-vindo. Em momentos de maior ansiedade, Lobato chegava a pensar em se jogar no Rio Capibaribe. Mas Lobo novamente ajudou o rapaz, que assim desistiu de se atirar nas águas do rio que corta o Centro do Recife. E para ficar ainda melhor, ganhou no jogo do bicho, ao apostar no burro.

Conversando com Lobo, ele ficou sabendo que o Hospital Oswaldo Cruz abriria concurso para o preenchimento de quatro vagas para estudantes que auxiliavam os médicos. Mas Lobato não tinha feito ainda a disciplina medicina tropical, justamente a matéria que seria cobrada na prova. O catedrático então lhe emprestou os livros necessários e o jovem conquistou o primeiro lugar do concurso. Podendo escolher, Lobato optou por trabalhar numa enorme sala destinada aos doentes de tuberculose. Eram quatro internos e cada um dava plantão a cada quatro dias. Lá ele aprendeu bastante ao fazer as necropsias e terminou por contrair o que então se chamava de complexo primário. A denominação se deve ao fato de a criança, quando pega sujeira com as mãos e em seguida as leva à boca, transporta junto o bacilo da tuberculose, que está no ambiente e vai direto para o pulmão. No entanto, em vez de se espalhar o bacilo produz uma lesão na pleura, o que gera reação ganglionar. Quase todas as crianças têm, e para evitar a doença elas são imunizadas com a vacina BCG. Mas o protegido Lobato da infância não teve e assim contraiu tuberculose adulto.

Além de um rendimento de 325 mil réis por mês, Lobato tinha casa e comida no hospital. Logo depois de ter passado no concurso ele conheceu outro grande nome da medicina pernambucana, o professor e pesquisador Aggeu Magallhães - que hoje dá nome ao centro de pesquisas da Fiocruz no Recife. Foi Aggeu, sabendo do brilhantismo de Lobato, que o fez prestar outro concurso, desta vez para o serviço de identificação de óbitos que era mantido pelo governo do estado - atuando em parceria, o primeiro fazia os pareceres médicos a partir dos laudos enviados pelo segundo. O paraense passou a ter então duas fontes salariais e uma vida mais confortável. Embora adaptado ao Recife, passava por sua cabeça um retorno a Belém depois da formatura, que ocorreria no fim daquele 1937. A intenção era fazer carreira como professor universitário no Pará. Mas Lobato sequer desconfiava que seus contatos o levariam em outra direção. O destino seguinte do recém-formado médico foi a cidade de São Paulo. E por obra de Assis Chateaubriand.

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