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01/04/2004

Lobato Paraense

A vida e a carreira do pesquisador Wladimir Lobato Paraense

Ricardo Valverde


Foto: Peter Ilicciev.

 

O veterano historiador inglês Eric Hobsbawm define como "O breve século 20" o período que vai da eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914, ao desmoronamento da União Soviética, em 1991. Os dois momentos-chave tornaram mais curto, na visão do mestre britânico, aquilo que para a cronologia oficial dura exatos e invariáveis - nem mais, nem menos - 100 anos. Nascido há quase nove décadas (16/11/1914), o pesquisador Wladimir Lobato Paraense é mais longevo que o século estabelecido por Hobsbawm - e até do que o próprio historiador, três anos mais novo. Paraense no sobrenome e na naturalidade, filho de Igarapé-Mirim, cidade a 75 quilômetros de Belém, Lobato correu o Brasil e quase todos os países das Américas coletando moluscos para se transformar em um dos maiores malacologistas (profissionais que estudam esses seres) do mundo. Ainda na ativa, trabalhando diariamente em seu laboratório, o pesquisador passa praticamente todo o seu tempo no campus da Fiocruz: afinal, ele e a mulher Lygia dos Reis Corrêa, ela também malacologista, moram na Vila Residencial da Fundação.

Baixo, de fala mansa e com o andar lento que é natural em um nonagenário - ele se sente cansado ao caminhar depressa -, Lobato gasta dez minutos para ir a pé, junto com Lygia, de seu apartamento na Vila ao Departamento de Malacologia do Instituto Oswaldo Cruz (IOC). Ela é a atual chefe do departamento e conhece Lobato há pouco mais de 50 anos, época em que os caminhos de ambos começaram a se cruzar ao assistirem a uma conferência em Belo Horizonte. Na ocasião, aos 18 anos, Lygia era uma jovem estudante de história natural e Lobato, 20 anos mais velho, um médico e pesquisador do Instituto Nacional de Endemias Rurais (Ineru) que trabalhava na capital mineira. "Ele reparou em mim porque depois da palestra, que tratou de miséria e fome, eu chorei muito. Nós pegamos o mesmo elevador e ele ficou observando aquela menina chorona", lembra Lygia, que afirma não ter notado a presença de Lobato. Os dois só seriam apresentados algum tempo depois, quando ela passou a trabalhar no Ineru. Mas para saber como o jovem médico foi parar em Belo Horizonte e conheceu a mulher que o acompanha há meio século, é preciso recuar no tempo.

Filho de Joaquim Mamede de Moraes e Orminda Paraense Lopes, o pequeno Wladimir perdeu os pais muito cedo. Joaquim morreu quando ele tinha 2 anos e Orminda faleceu antes de o menino completar 6 anos - o garoto ficou órfão de pai e mãe quando o mundo ainda não havia entrado na década de 20. Sem pais e avós, Wladimir e as irmãs Hilda, Odete, Stella e Dulcinéia (esta última a única ainda viva) se mudaram para a casa de Raymundo Hormínio Paraense, primo de Orminda e casado com Maria da Costa, em Belém. O casal tomou conta das cinco crianças e cuidou delas como se fossem seus filhos, com tanto carinho e dedicação que Lobato - cujas recordações dos pais biológicos são vagas - considera-os como pais verdadeiros.

Zelosos, Raymundo e Maria logo puseram os órfãos na escola e o pequeno Wladimir entrou para o curso primário em 1921. O garoto gostava de passar o tempo lendo Lições de coisas, um manual de ciências naturais que fez sucesso na época e tratava do Universo e seus astros, e a revista Eu sei tudo, na qual lia maravilhado algumas histórias de Julio Verne. O Cosmos o encantava e Lobato chegou a pensar que mais tarde seria astrônomo, o que logo o fez abandonar a intenção anterior, que era a de se tornar bombeiro - os carros vermelhos, as sirenes e os homens pendurados preenchiam sua fome por aventuras. Da astronomia para a biologia foi um pulo e a partir daí ele deu vazão à sua curiosidade realizando experiências com animais como ratos e rãs na oficina do avô, onde improvisava dissecações com as cobaias. A vocação para a biologia levaria Lobato, em 1931, aos 16 anos, a entrar para a Faculdade de Medicina de Belém.

Em 1925, em seu primeiro ano no Ginásio Paes de Carvalho, Lobato criou um jornal manuscrito e ilustrado em que brincava com os colegas, publicava versos e pequenos contos. O jornal, que saía mensalmente, ganhou popularidade no ginásio e um impulso decisivo com o ingresso em seu expediente de um amigo de classe de Lobato, o filho do presidente da Câmara de Vereadores de Belém. Com Lobato de diretor, o amigo como redator-chefe e ambos com 12 anos e contando com a força do pai político do garoto, o jornal passou a ser impresso no Instituto Lauro Sodré, uma espécie de liceu de artes e ofícios. "Eu não dormi na noite em que vi meu nome impresso no jornal", lembra Lobato. O jornal duraria os quatro anos em que ele passou no Paes de Carvalho e deu a Lobato a base para que na faculdade ele fundasse o Acadêmico de Medicina, publicação que circulou durante três anos.

Na maior parte do tempo caseiro, o jovem Wladimir gostava de fazer ginástica em casa, escondido no porão, já que a preocupada mãe adotiva tinha medo de que ele adquirisse uma hérnia de disco durante os exercícios, devido ao esforço físico. E como todo garoto brasileiro da virada dos anos 20 para os 30, ele descobriu uma atividade recreativa que começava a se tornar uma paixão nacional: o futebol. Atuando de fullback (zagueiro) num campinho perto da casa de uma tia-avó, para onde costumava se deslocar nos fins de semana, o menino, embora não soubesse jogar direito, era conhecido pelos potentes chutes que saíam de seus pés. Mas, assim como a ginástica, esse era um hobby que Wladimir praticava sem que a mãe soubesse - porque na certa ela proibiria, com medo de que quebrasse a perna. Maria da Costa jamais soube que, entre os colegas de bola, seu filho era conhecido como "Foguetório" pelo chutes fortes que varavam o terreno em que disputava aqueles rachas juvenis. Morando em Belém, o coração de Wladimir Foguetório se encantou com o esquadrão azul do Clube do Remo, que parecia imbatível naquele tempo: entre 1913 e 1930 o time conquistou 11 campeonatos paraenses. Apesar das façanhas do Remo nos gramados, o garoto nunca assistiu a um jogo de seu time de infância. E apenas uma única vez entrou em um estádio de futebol, acompanhando um pesquisador americano que esteve no Rio de Janeiro e queria conhecer o Maracanã. A estréia ocorreu há seis anos e o jogo caiu no esquecimento - Lobato não se recorda dos times, apenas da festa das torcidas, que ainda está viva na memória. Assim como o foguetório ouvido no estádio.

A rigidez materna fez com que Lobato acabasse se dedicando quase que exclusivamente aos estudos. Ele também gostava de jogar bola de gude e andar de bicicleta - mas mesmo essa atividade não era bem vista por Maria, porque afinal o garoto poderia cair do veículo e se arrebentar no chão. A pregação da mãe, os estudos e os anos vividos nos laboratórios e em viagens pelas Américas em busca de caramujos fizeram com que Lobato deixasse de lado o interesse pelas atividades físicas. Agora, décadas depois, é que ele está novamente cuidando do corpo. Há quatro meses, por três vezes na semana (das 17h às 18h), o pesquisador passou a receber em sua residência um profissional com o qual se submete a uma bateria de exercícios físicos. Lobato diz que a malhação foi "idéia da Lygia" e que "não faz mal nenhum".

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